sábado, 3 de fevereiro de 2024

Luiz Zago, o primeiro jogador profissional registrado na F.P.F.

 

Luiz Zago, o primeiro jogador profissional registrado na Federação Pernambucana de Desportos (atual F.P.F.) em 1937. Foto: Diário da Manhã/CEPE.

Com a chegada da delegação do América Futebol Clube do Rio de Janeiro ao Recife, o primeiro clube do sudeste a jogar em Pernambuco, em 10 de novembro de 1915, onde realizou quatro amistosos contra combinados formados por jogadores ingleses residentes na capital pernambucana e contra o selecionado pernambucano. Foram todos goleados. O poderio do esquadrão rubro carioca despertou nos dirigentes do Sport Club do Recife e do nosso América Futebol Clube a ideia de importar jogadores de centros mais desenvolvidos para as disputas finais do Campeonato Pernambucano, que não era ilegal, mas que provocou protestos dos demais clubes e parte da imprensa, apenas o Jornal Pequeno, expressivo jornal da época, concordava com a ideia. Já o Diário de Pernambuco teceu diversas críticas contrário a esta inovação.

No Campeonato Pernambucano de 1916, o Sport Recife chegou à final contra o Santa Cruz e trouxe do América do Rio de Janeiro, o jogador Paulino, que era jogador profissional, mas que veio camuflado com sendo um jogador amador e que exercia uma profissão paralela, sendo ele, linotipista (operador de máquina) do jornal carioca Correio da Manhã. O Sport Recife sagrou-se campeão.

Em 1917, o Sport Recife repetiu a dose e novamente ganhou o campeonato, sendo bicampeão. Desta feita, o Sport Recife trouxe do Botafogo carioca, o atacante profissional Ciro Werneck, que o clube rubro-negro já o havia inscrito junto a Liga Pernambucana de Desportos (atual F.P.F) dois meses antes da final, conforme exigia o regulamento.

Em 1918, O Sport Recife tentou contratar jogadores no sul do país para disputar às finais contra o América-PE, como não conseguiu, enfrentou uma maratona incrível para que chegasse em tempo hábil, o jogador uruguaio Pedro Mazullo, que veio de Montevidéu. Por outro lado, o América foi mais esperto, e trouxe de São Paulo, três jogadores: Bermudes, Alex e Peres, e foi campeão pernambucano de futebol pela primeira vez.

Luiz Zago, deu início ao futebol profissional em Pernambuco, quando firmou o primeiro contrato de um jogador de futebol registrado na Federação Pernambucana de Desportos (Atual F.P.F), contratado pelo Central Sport Club, de Caruaru-PE.

Saiba um pouco da história deste grande jogador, que chegou para revolucionar o futebol pernambucano:

Luiz Zago (centro), quando jogava no Sírio-SP em 1934. Foto: Correio de São Paulo.

Luiz Zago, nasceu em 1914, na cidade de Ribeirão Preto, São Paulo. Jogava de lateral-direito e quarto-zagueiro e meio campista. Descendente de italianos, desejava jogar no futebol italiano, algo que nunca aconteceu. Tinha 1,79 de altura, calçava chuteiras 41. Quando veio jogar no Central, pesava 75 quilos. Começou sua carreira futebolística no juvenil da Portuguesa de Desportos-SP em 1933. Em 1934, Luiz Zago disputou o Campeonato Paulista pelo Esporte Clube Sírio, como quarto-zagueiro, ao lado de Turillo e Russinho. O Sírio foi o pior time do campeonato com doze derrotas, sendo oito goleadas sofridas e uma vitória diante do fraco E. C. Paulista. Neste mesmo campeonato, em 24 de junho, o Sírio vencia o São Paulo por 2 a 0, mas o clube do Morumbi reagiu e virou o jogo para 3 a 2. Luiz Zago e o são-paulino Zarzur entraram em luta corporal dentro de campo, sendo expulsos pelo árbitro. Luiz Zago, recebeu uma punição de dois jogos de suspenção e uma multa de 50 mil réis.

Em 1935, Luiz Zago passou por um período de teste no Comercial de Ribeirão Preto, ficando no clube até ser negociado ao Atlético Mineiro.

Em 31 de janeiro de 1936, o jornal Correio de São Paulo, anunciou que o Atlético Mineiro havia contratado o quarto-zagueiro, Luiz Zago, para um período de testes, onde veio a ser aprovado e formado a linha de zaga com Alcindo e Bala. O Atlético Mineiro foi campeão mineiro deste ano, com 5 vitórias e uma derrota, num campeonato bastante tumultuado, onde durante as disputas, três clubes: Palestra Itália, América e Vila Nova, por divergências com a então, Associação Mineira de Futebol, abandonaram o campeonato e perderam todos os pontos conquistados. Mesmo conquistando o título, Luiz Zago foi negociado com o Central Sport Club-PE.

Luiz Zago no Central de Caruaru em 1937. Ele é o último jogador, perto do dirigente de terno branco.

Em 11 de junho de 1937, desembarcava do navio Itaquicé, no porto do Recife, o lateral-direito e quarto-zagueiro, Luiz Zago, contratado pelo Central Sport Club, e registrado na Federação Pernambucana de Desportos, sendo o primeiro atleta a assinar um contrato salarial com um clube como jogador profissional, dando início ao futebol profissional em Pernambuco.

Após o término do Campeonato Mineiro de 1936, onde o Atlético Mineiro sagrou-se campeão, Luiz Zago, recebeu uma carta de seu amigo, o jogador paulista, Agostinho Serrano, que jogava pelo Great Western-PE, e ficou sabendo que o Central de Caruaru estava formando uma equipe para disputar pela primeira vez o certame pernambucano e estava precisando de um jogador que exercesse também, a função de técnico. Então, procurou a diretoria da patativa e informou-o que, Luiz Zago havia sido campeão mineiro pelo galo e que estava à disposição do clube. A diretoria do Central de Caruaru, resolveu contratá-lo. No dia 11 de junho de 1937, Luiz Zago, desembarcava no porto do Recife, do navio Itaquicé e foi recebido pelo presidente do Central José Victor de Albuquerque e pelo diretor de futebol, Walfrido Pereira.

Luiz Zago, recebeu dois contos de luvas e um salário mensal de 600 mil réis, durante seis meses. Ele foi inscrito na Federação Pernambucana de Desportos em 27 de junho de 1937. O Central de Caruaru nesta temporada não fez um bom campeonato, ficou na 5ª colocação, com 13 pontos em 15 jogos: 6 vitórias, 1 empate e 8 derrotas, marcou 44 gols e sofreu 37 gols.  Segundo Luiz Zago, o Central teve um bom desempenho, mas foi prejudicado pela arbitragem, principalmente nos jogos envolvendo Sport Recife, Santa Cruz e Náutico.

Em 20 de janeiro de 1938, o Sport Club do Recife contratou, Luiz Zago. No dia 3 de abril, ele estreou pelo Campeonato Pernambucano na vitória do Sport Recife sobre o Great Western, por 4 a 2. Luiz Zago foi seis vezes campeão pelo Sport Club do Recife: 1938,1941 (invicto), 1942, 1943,1948 e 1949. Entre setembro de 1942 e maio de 1943, Luiz Zago jogou pelo Vasco da Gama. Em janeiro de 1944, retornou ao Vasco, mas em abril, já estava jogando pelo Sport Recife novamente. Permaneceu no clube durante 12 anos. No dia 8 de maio de 1949, jogou seu último jogo, na vitória do Sport Recife contra o Flamengo-PE por 7 a 1.

Time do Sport Recife de 1942 que encantou o sudeste e o sul do país.

Luiz Zago, contou uma história que aconteceu após o jogo Vasco da Gama 4 x 5 Sport Recife, no campo do América (RJ), no dia 1º de março de 1942, durante a grandiosa excursão rubro-negra ao sudeste e sul do país. Ele contou: “Vencemos o Vasco por 5 a 4, no campo do América, porque São Januário estava em obras. Mas a nossa concentração era no próprio estádio do clube da Cruz de Malta. Ficamos esperando que chegassem os dirigentes com o dinheiro da renda para irmos jantar. As horas foram passando e nada deles aparecerem. A fome aumentando e com todo mundo liso, encontrei a solução. Procurei Florindo, zagueiro do Vasco, que tinha jogado comigo no Atlético Mineiro, e como sabia que ele tinha o mesmo tamanho do meu pé vendi-lhe um sapato por 25 mil réis. Com esse dinheiro saímos em busca de uma barraca, onde compramos palmas de banana e dezenas de laranjas. Quando o diretor do Sport apareceu, quase às 11 horas, estávamos com a barriga cheia e dormindo. No outro dia, a imprensa brasileira estava glorificando os heróis do clube da Ilha do Retiro, sem imaginar o drama vivido por nós no Rio de Janeiro”. (Entrevista concedida em 1972).

Em 9 de setembro de 1945, Luiz Zago, após um amistoso contra o Íbis, retornava para sua casa, no Pina, dirigindo um veículo de um amigo, quando perdeu o controle da direção e veio a colidir contra o balaústre da ponte do Pina, sofrendo um profundo corte na cabeça. Luiz Zago, só voltou a jogar, no segundo turno do Campeonato Pernambucano.

Em 20 de janeiro de 1948, na Ilha do Retiro. A torcida do Sport Recife fez uma grande homenagem a Luiz Zago pelos 10 anos vestindo a camisa rubro-negra.

Em 25 de maio de 1949, Luiz Zago, deixou a direção técnica do Sport Recife.

Na época de Luiz Zago, ainda não existia as competições nacionais de clubes. Desde 1923, vinha sendo disputado o Campeonato Nacional de Seleções Estaduais. O bom desempenho de Luiz Zago no Sport Recife, fez com que ele integrasse a Seleção Pernambucana de 1938 até 1950, a maior parte atuou como quarto-zagueiro, nos dois primeiros anos, como lateral-direito. A partir de 1947, atuou como assistente técnico.

Luiz Zago em 1942. Ele foi jogador, técnico e árbitro de futebol. jogou durante treze anos no futebol pernambucano e foi seis vezes campeão pernambucano pelo Sport Recife. Foto: Diário da Manhã.

Em dezembro de 1950, Luiz Zago, torna-se árbitro da Federação Pernambucana de Futebol.  Zago disse que não foi difícil assumir a condição de árbitro de futebol, pois antes de deixar de ser jogador, sempre conversava muito com os principais árbitros do Estado: Sherlock, Leon Markman, Batista da Conceição Galindo e José Mariano Carneiro Pessoa, conhecido como Palmeira. Luiz Zago adiantou que, ser árbitro foi a profissão mais ingrata que ele exerceu. Foram apenas seis anos, sendo os últimos dois anos pela Federação Baiana.

O motivo de ter deixado de apitar em Pernambuco, foi a incompreensão dos dirigentes de futebol, que culpa o juiz pelo fracasso em campo de seu time, foi o que aconteceu com o Náutico. O clube dos Aflitos vetou seu nome para integrar um trio que dirigiria um clássico contra o Santa Cruz, decidindo o segundo turno do certame de 1953. Com o veto do Náutico ao seu nome, Zago resolveu deixar o futebol pernambucano indo para a Bahia, onde encerrou também sua carreira de apitador.

Como todo árbitro, Luiz Zago, também teve seus momentos difíceis na direção de uma partida. E isso aconteceu em Salvador, quando dirigiu um clássico Bahia e Vitória, na Fonte Nova, isto devido à grande rivalidade entre os dois clubes baianos. 

- Foi a partida mais difícil que apitei em toda minha carreira, porque foi muito catimbada e seu final terminou com um grosso sururu entre os jogadores de ambos os times. Resolvi deixar o apito em 1956, para não fazer mais inimigos, porque como árbitro não tem quem não faça inimizades porque cada torcedor quer a vitória de seu clube e os próprios dirigentes, quando seu clube não tem condições, lançam toda culpa no juiz. É realmente uma profissão ingrata. Concluiu.

Desde que veio para o Central em 1937, Luiz Zago, sempre acumulava as funções de jogador e técnico. E até mesmo como assistente técnico no Sport e na Seleção Pernambucana. Depois dos seis anos na arbitragem, Luiz Zago seguiu sua carreira de técnico, mas nunca deixou de apitar jogos. Há vários registros entre 1958 e 1961, onde Luiz Zago foi convidado para apitar em Pernambuco, Paraíba, Ceará, Pará, além de ser convidado pelo Sport Club do Recife para apitar seus jogos na excursão feita em Paramaribo, no Suriname, em março de 1961.

Como técnico de futebol, Luiz Zago teve sua grande oportunidade no Paysandu, onde permaneceu por vários anos e foi campeão estadual em 1959 e 1965. Dirigiu também, o Fast Clube e o Rio Negro de Manaus e o CRB de Alagoas.

Em 1972, o técnico Luiz Zago foi dirigir o Portimonense. Foto: Diário de Pernambuco.

Em fevereiro de 1972, viajou para a cidade de Portimão, no Algave, província de Portugal, para dirigir o Portimonense que estava na 2ª divisão.

Em 24 de novembro de 1980, o Diário de Pernambuco publicou uma matéria que chocou o público esportivo pernambucano, onde informava que Luiz Zago estava ficando cego e estava passando por dificuldades financeira e precisando de apoio de todos: jogadores, dirigentes e torcida. Luiz Zago, declarou que, quando deixou o mundo da bola, trabalhou como gerente do famoso “Bar Mustang”, que existe até hoje na Conde da Boa Vista. Mas começou a ter problema na visão que o obrigou a deixar o trabalho. O atestado médico feito no Hospital da Polícia Militar de Pernambuco por solicitação dos médicos: Pedro Lira e Fernando Ventura indicava que Luiz Zago, apresentava baixa visão em ambos os olhos, devido a processo retiniano degenerativo central, irreversível.

Após a publicação da matéria, o ex-goleiro Manuelzinho, que jogou com Zago no Sport, foi o primeiro a se mobilizar para ajudar seu velho amigo. A Torcida Organizada Bafo do Leão, também se mobilizou em campanhas para conseguir recursos para ajudar seu grande ídolo do passado.

À época, Luiz Zago residia no Ibura de Baixo e recebia uma modesta aposentadoria do INPS. Estava viúvo pela segunda vez e morava com sua filha solteira. Tinha mais dois filhos casados. Um deles, Luiz Zago Filho, atacante, jogou no América-PE em 1964, depois jogou no Paysandu.

Por: Jânio Odon/VOZES DA ZONA NORTE

Fonte: Diário de Pernambuco, Diário da Manhã/CEPE, O Jornal (RJ), Jornal Pequeno, Correio de São Paulo, Gazeta Popular, Biblioteca Nacional (RJ).


segunda-feira, 1 de janeiro de 2024

Katarina Real, a embaixadora da cultura pernambucana

 

A antropóloga e historiadora norte-americana Katarina Real, uma apaixonada pela cultura popular pernambucana. Foto: Fundaj.

Foi durante minhas pesquisas, sem querer, que descobri a figura desta genial personagem norte-americana, conhecida em nossa cidade Recife como Katarina Real. Uma mulher apaixonada pela cultura popular e suas raízes em toda a América. O que me fascinou em Katarina Real, que era antropóloga, foi sua ousadia e predestinação em busca da essência e os elementos culturais de cada região e lugarejos remotos, onde poucos arriscariam transpor.

Aos 24 anos, após se casar aqui no Recife, com o agrônomo e conterrâneo, Robert Cate, que fazia trabalho de pesquisa no Brasil, passou a se chamar Katherine Royal Cate, mas que era conhecida aqui na terra do frevo como Katarina Real. Ela nasceu em 12 de agosto de 1927, na cidade de Annapolis, em Maryland (EUA).

Esteve na capital pernambucana pela primeira vez, ainda recém-nascida a bordo do Cruzador Milwalkee da Marinha Americana, comandado por seu pai, o almirante Forrest Betton Royal, que veio ao país para instruções navais com a Marinha do Brasil.

Em 1949, formou-se em Artes e Estudos Luso-Brasileiro pela Stanford University. Neste período, conheceu a obra de Gilberto Freyre, Casa Grande & Senzala, traduzida para o inglês por Samuel Putman. Katarina Real ficou muito impressionada com o que leu, principalmente com a influência do negro africano na cultura nordestina.

Aos 27 anos, Katarina Real, apresentava um programa cultural na rádio da Universidade de Stanford sobre a cultura Pan-Americana, onde em sua programação, exibia músicas folclóricas e regionais do Nordeste brasileiro e entrevistas. Numa dessas entrevistas, conheceu o jornalista pernambucano, Luiz Beltrão, onde construiu grande amizade. Luiz Beltrão enviou inúmeras correspondências com informações sobre a cultura pernambucana, gravações de frevo, maracatus e ritmos pernambucanos para serem disseminados na rádio americana.

Katarina Real esteve em Pernambuco diversas vezes durante as décadas de 1950 e 1960 e fez várias visitas entre as décadas de 1980 e 1990. Entre suas idas e vindas ao Brasil, Katarina Real esteve no Pará, Pernambuco, Rio de Janeiro e Brasília.

Em Pernambuco, Katarina Real, viajou pelo interior do Estado, visitando povoados e cidades em busca de elementos culturais existentes em cada localidade como: maracatus rurais, reisados, caboclinhos, cirandas, papangus, pastoris etc. No Recife, subiu morros, caminhou por alagados e córregos, conheceu as comunidades carentes, fez amizades e registrou tudo em seus rascunhos e fotografias coloridas, o folclore, a tradição, o habitat de cada localidade visitada, algo que poucos pesquisadores e historiadores pernambucanos ousaram fazer.

Katarina Real, foi brilhante, ousada, destemida e humana. Uma gringa que amou o nosso carnaval, nossa cidade e nosso Estado e que merece toda nossa reverência. Conheça um pouco de sua história e trajetória, além de uma entrevista, numa matéria registrada magistralmente pelo Diário de Pernambuco em 26 de fevereiro de 1989, concedida a jornalista Lêda Rivas, e que o Blog Vozes da Zona Norte reproduz para você.

No Caminho da volta (Dizia o título) – Diferente de uma boa parte de seus compatriotas que tende a considerar todo o tipo de vida inventiva abaixo do rio Grande como uma imensa massa uniforme, sem nenhuma identidade cultural, Katharine Royal Knight (nome de solteira) conseguiu, em algumas décadas de vida, trabalho e emoção, detectar algo mais que exótico, o burlesco e o caricaturável deste lado desta pobre dilacerada América.

Master of Arts e doutora em Antropologia Cultural e Folclore, esta norte-americana – que, certamente, por equivoco nasceu nas imediações da baía de Chesapeake, mas bem poderia ter vindo ao mundo às margens do Capibaribe – tornou-se, em pouco tempo, uma das maiores conhecedoras dos carnavais do mundo e na mais confiável expert – e a avaliação é feita por folcloristas ilustres do porte de Olímpio Bonald Neto e Evandro Rabello – do carnaval pernambucano. A mais característica das nossas festas populares é, para ela, uma surtíssima atividade intelectual, à qual dedicou anos de estudos e pesquisas e que veio a consagrá-la como a autora do mais completo livro sobre o assunto.

Foi exatamente para atualizar suas investigações antropológicas e preparar uma segunda edição, revista, do seu “O Folclore no Carnaval do Recife”, o mais importante livro publicado sobre o tema, como nos adverte Evandro Rabello – que Katharine voltou ao Recife. Os que dela os recordam – que são muitos, entre expressões de nossa cultura erudita e representantes do pensamento popular – viram-na misturar-se com a massa, ao som do frevo e ao ritmo do passo, no início deste mês, inacreditavelmente multiplicada em várias pessoas, presente ao mesmo tempo, na passarela da Dantas Barreto, nas ruas de Olinda, na amplidão oceânica de Boa Viagem.

“Eu tinha tanta saudade do Recife...”, revela, emocionada até às lágrimas, lembrando que é tanto o seu amor pela cidade que fez grafar o nome do Recife na sua aliança de casamento. Tanto é o seu amor por tudo o que lembre a ibero e a luso-América, que chegou – no tempo em que fazia um programa sobre o folclore latino na KGEI, Universidade do Ar na Califórnia, - aportuguesar seu próprio nome, passando assinar-se Katarina Real. Ainda não liberta de toda heráldica que a conferência familiar (por parte do pai, Royal, por parte da mãe, Knight lhe impunha, viria, mais tarde, a acrescentar o sobrenome do marido, Cate, ao nome.

Esta Katarina Real-Cate que todos conhecemos tem um forte e longínquo vínculo com as terras brasileiras. Aqui aportou, nos últimos anos da década de 1930, pelas mãos do pai, um oficial da Marinha norte-americana transferido para o Rio de Janeiro, vindo do Estado de Maryland, na costa leste dos Estados Unidos. “Em 1939, sem saber uma palavra em português, eu cantava marchinhas carnavalescas e sambava, fazia o corso, com confetes e serpentinas na avenida Rio Branco”, recorda. O samba abria caminho, nas veias da menina parecida com a atriz Shirley Temple, para que o frevo lhe corresse, depois, no sangue. Foi o interesse pelas nossas manifestações folclóricas que fez Katarina retomar, muitas vezes, o caminho da volta.   

Mas primeiro aprimorou o aprendizado da língua e da cultura brasileira, no seu país de origem, estudando na Universidade de Stanford, onde especializou-se em estudos latino-americano, com ênfase no Brasil e no mundo luso-brasileiro. Contratada pela Embaixada dos Estados Unidos no Rio de Janeiro aqui chegou em 1950 para servir de intérprete e tradutora, atuando imediatamente ligada a um jovem diplomata recém-chegado de um posto desafiante em Calcutá. Transferida em seguida para Washington, estava, então, irreversivelmente ligada não só ao país como ao jovem diplomata, um talentoso especialista em ciências do solo, Robert Cate.

O Recife do final dos anos de 50 foi o cenário do casamento de Robert e Katarina. Desligado de suas funções na Embaixada, o casal voltou ao Estados Unidos para cursos de pós-graduação na Universidade da Carolina do Norte, andou – por força de estudos dela e do trabalho de Bob como agrônomo – em várias partes da América (o norte do Brasil incluído) e, finalmente, por exigência de uma bolsa concedida em 1961, a Katarina, pela Organização dos Estados Americanos, regressou ao Recife por um período que se prolongou por oito anos. Começavam aí as pesquisas que dariam origem ao livro “ O Folclore no Carnaval do Recife”, publicado pelo Ministério da Educação e Cultura, através da Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro.

O tempo em que residiu no Recife o sr. e a srª Cate transformaram o seu apartamento, no edifício Duarte Coelho na “Torre do Frevo”, numa clara alusão ao espaço que ali se concedia  a todos os amantes da folia. E tanta importância teve a participação de Katarina nos estudos antropológicos da Região que, em 1967 – ano da publicação do seu livro – ela foi indicada como representante do então prefeito Augusto Lucena na Comissão Organizadora do Carnaval do Recife (1965/1966) e secretária-executiva da Comissão Pernambucana de Folclore.

A última vez que Katarina esteve no Recife foi em 1977 (obviamente, no período carnavalesco). Doze anos depois, retorna (o marido Bob ficou em La Jolla, na costa pacífica, onde o casal mora “numa casa à beira mar, cercada de pedras, e onde se ouvem fantásticas tempestades) e onde – e aí alimenta a nossa inveja – “se comem maravilhosos crabs gigantes”, não só para atualizar seu interessante livro – totalmente esgotado – como para doar a Fundação Joaquim Nabuco, instituição que lhe serve de anfitriã, seu fichário e publicações raras alusivas ao carnaval pernambucano.8

Até meados de abril, possivelmente, Katarina Real estará entre nós. Entre os seus, para usar uma expressão que lhe agrada. Estudando, fazendo pesquisa de campo, revendo lugares queridos, falando de carnavais passados e lembrando os amigos, “tantos os que já estão no céu”, como Dona Santa”, aquela linda rainha do maracatu. E é isto que encanta nesta gringa recifencizada: o amor sincero e quase obsessivo que sente pelas manifestações populares e pela imensa massa anônima que faz a nossa história.

Num bate-papo informal sob a lua cheia e ao embalo de doces recordações – Katarina fala de seu trabalho, do seu amor pelo Brasil, do seu interesse pela nossa cultura (“lá em casa temos estantes para os livros brasileiros e estantes de livros americanos e as pessoas ficam ali olhando, abismadas, perguntando “você lê português?”) e eu, feliz, dizendo: “Eu não só leio, como escrevo em português”), do seu carinho pelos animais ( tem dois cães pomerânios lulus, “Xangô” e “Oxalá”, sucessores de “Urso Folião” e “Seu Pimenta”, que haviam ocupado o lugar de “Frevo e “Maracatu”), do seu profundo conhecimento do carnaval do mundo inteiro, em especial o nosso. São revelações apaixonadas – sensibilíssima – Katarina não raras vezes chega às lágrimas, principalmente quando fala dos que já se foram ou quando relembra (off the record) trajetórias distantes, como quando ela e Bob adentraram o sertão e desembocaram na caatinga, para descobrir milhares de belos passarinhos de todas as cores.

Vale a pena ouvir Katarina Royal Cate. Vale a pena aprender com ela.

DP – Katarina, por que o interesse pelo carnaval pernambucano?

KR – Porque o carnaval pernambucano é o mais interessante de todo o Brasil, principalmente do ponto de vista de seus aspectos folclóricos. Eu disse no meu livro que o carnaval do Recife é o mais folclórico do mundo. Mas eu gosto do carnaval em geral no Brasil, porque representa a verdadeira alma do brasileiro e considero-me um pouco brasileira. Gosto de beleza, música, dança, festividade, fantasia. Sou aliás, uma bailarina frustrada. Então, me dá uma felicidade imensa todo mundo nessa euforia carnavalesca e, às vezes, danço um pouco, caio no passo, caio no passo, e até faço o meu sambinha.

DP – Qual a manifestação carnavalesca mais autêntica e original que você conhece?

KR – Pergunta bastante difícil. Não há dúvida que os maracatus, caboclinhos, os folguedos folclóricos são os mais interessantes. Diria também que o urso brincante pela rua, os bois, cavalo marinho, Mateus, todas essas figuras do folclore nordestino enriquecem o carnaval e são muito originais. Também citaria a presença desses caboclos de lança com suas golas bordadas. Há muita coisa no carnaval que é completamente original, que não existe em outra parte do Brasil.

DP – E como vê o carnaval na cultura brasileira – a se admitir que exista uma cultura caracteristicamente brasileira?

KR – Eu diria que é uma das pedras fundamentais da rica cultura brasileira popular e até certo ponto de vista, intelectual. O carnaval do Brasil produz obra de arte, literatura, escultura, até sua própria arquitetura – o sambódromo do Rio de Janeiro - , o carnaval é tão interligado na cultura brasileira que é difícil imaginar um Brasil sem o carnaval. É uma pedra tão fundamental na cultura brasileira como o futebol, o jogo do bicho, feijoada no sábado à tarde, todas essas tradições tipicamente brasileiras.

DP – Falando em carnaval...dentro das manifestações populares brasileiras você estabeleceria algum paralelismo entre o carnaval e o futebol, as duas grandes paixões de massa no país?

KR - Estão tão interligados que cada vez que o Brasil ganha um jogo de futebol sai um grupo carnavalesco festejando. Também há muitos jogadores de futebol, principalmente nas escolas de samba do Rio, e aqui no Recife, integrados ao carnaval. Ambos, o carnaval e o futebol, expressam e revelam essa extraordinária e exuberância da personalidade brasileira.

DP – Você me disse que antes de aprender a falar português, você cantava nossas músicas, sem saber nada da língua, e dançava o samba. Sei também que você é muito versada no passo e lhe pergunto: Como uma grande conhecedora da coreografia do passo, você acha que este poderia chegar a ser um dos elementos configuradores de um possível balé brasileiro?

KR – Bem, seria um balé de bailarinos bastante individualistas porque não se pode colocar uma fila de passistas fazendo a mesma coisa. O passista faz o que quer. Agora, por exemplo, nos desfiles dos clubes, que vão colocando as alas dos passistas, isto funciona, é uma beleza, é um balé folclórico na passarela. Será então levar o que acontece na passarela para o palco – e isto será um balé. Mas um balé de todo o mundo fazendo coisas diferentes, que é uma das características do passo. E é balético, não há dúvida.

DP – Eu tenho uma curiosidade em relação ao trabalho que você realizou aqui e qual foi o feito – palavras suas – nos morros e mangues da cidade: como uma gringa era tratada, então, no meio de nossa mulatice?

KR – (risos) Oh, maravilhosamente! Isto foi a coisa mais estranha que me aconteceu aqui. Digo no meu livro que foi das coisas mais divertidas. Quando eu andava lá pelo alto de Nossa Senhora de Fátima (antigo Alto da Foice), parece que as pessoas nunca tinham visto uma criatura como eu. Todo mundo se aglomerava em torno de mim, principalmente os meninos, e eu ouvi alguém dizer (sem saber que eu estava escutando), que eu era “a senhora galega da fala estranha”. Eu achei isso uma beleza. O povo sempre me aceitou maravilhosamente. E isso eu achei até milagroso. Você veja, uma mulher estrangeira aparecer na porta de um barraco, segurando um caderno, fazendo uma porção de perguntas, algumas até indiscretas, e o povo receber tão bem. Não sei explicar, o povo sempre me tratou com a maior gentileza e sempre lhe serei gratíssima por isso. Para mim uma das maiores experiências da minha vida foi este contato, esse entrosamento, esse amor do povo maravilhoso dos subúrbios recifenses.

Dona Santa, uma lenda do carnaval pernambucano. Fundou o Maracatu Estrela do Oriente, dirigiu os maracatus Leão Coroado e durante 16 anos, o Nação Elefante. Foi coroada rainha do maracatu em 1947. Faleceu em 1962, aos 85 anos. Foto: Fundaj.

DP – E desse tempo que lembranças você guarda com mais emoção?

KR – Tantas lembranças, Por várias noites visitei Dona Santa na sede do seu maracatu, na época que ela estava saindo toda trajada de rainha com seu cortejo para visitar outro clube popular. Tive a honra e o privilégio de acompanhá-la nessas visitas. Uma vez fui lá no Alto do Céu (Beberibe), subi a pé porque não havia caminho pavimentado e era um dia de calor infernal. Subi e estava morta de cansaço e de sede, e as pessoas ali bem rústicas, a maioria era do Interior, mandaram vir água mineral, café com leite para servir a uma pessoa completamente estranha. Eu achei uma generosidade inacreditável. Momentos como esse são inesquecíveis. E a coisa mais linda que eu conheço é a vista da cidade do Recife desde os altos, como o Morro da Conceição, o Alto do Mandu. O Recife lá longe, brilhando ao luar. É uma lembrança fantástica. E sobre isso eu posso falar horas e horas.

DP – Você assistiu ao nosso carnaval agora, depois de ficar tanto tempo longe do Brasil. E certamente observou que o carnaval mudou em algo, surgiram agremiações e carnavalescos novos, e surgiu um grupo muito forte, que arrasta uma multidão extraordinária, que é o Galo da Madrugada. Você acha que o Galo da Madrugada é o aburguesamento do carnaval?

KR – O carnaval tem de mudar com o tempo e tem de aburguesar-se também...

DP - ... ou a burguesia de carnavalizar-se ...

KR – (risos) Exatamente. Um ou outro. Mas um carnaval que não está em plena evolução, mantendo seu dinamismo, é condenado a decadência ou ao desaparecimento. Aliás, isso aconteceu em certos dos antigos carnavais da Europa, que tornaram-se arcaicos, não combinavam com os tempos, e o povo perdeu interesse. O aburguesamento do carnaval é uma exigência de sua vitalidade. Claro que a burguesia não faz coisas tão lindas como o povo, isto é um ponto de vista pessoal. Mas carnaval é para todo o mundo, carnaval é para brasileiros, e até para Katarina Real. Todo mundo pode participar a sua própria maneira.

DP – A propósito dos carnavais europeus, você teve a oportunidade de conhecer e/ou de fazer estudos comparativos entre o nosso carnaval e o de outros países, não necessariamente da Europa?

KR – Umas das minhas especialidades é o estudo de carnavais do mundo inteiro, no espaço e no tempo. Minha tese de doutoramento foi um grosso volume estudando as origens do carnaval, desde as Saturnálias de Roma e as festas pagãs da Grécia antiga, do Egito, da Babilônia. E até as Saturnálias dos judeus, que era a Festa do Purim. Moramos vários anos nas Caraíbas e fiz uma pesquisa sobre o carnaval de Trinidad e das Guianas. Trinidad tem esses músicos maravilhosos dos grupos de tambores de aço. Fiz pesquisa entre eles. Não quero criticar, mas os pretos que tocam tambores de aço não me trataram com a gentileza do povo brasileiro. Foram gentis de alguma forma, mas não houve o entrosamento que tive aqui. Há também o carnaval de Nova Orleans, o Mardi Gras, um carnaval bem diferente do brasileiro, bastante afrancesado, mas que tem a sua parte popular – os negros das orquestras de jazz desfilam, por exemplo. Em suma, sempre que haja um carnaval para pesquisar, estou lá com meu caderno. Mas de todos esses carnavais que conheço, não tenho dúvida de que o do Brasil é o mais interessante, o mais vibrante e o mais dinâmico.

DP – O que mudou no carnaval pernambucano, na sua opinião?

KR – Na sua estrutura, nas suas características e na sua personalidade não vejo muita diferença. O carnaval de Pernambuco desde a década de 1960 tem crescido fantasticamente. O crescimento do carnaval em si, o crescimento do número de integrantes em todas as agremiações, clubes, blocos, maracatus, caboclinhos, as escolas de samba. Eu fiz um fichário enorme, na década de 60, com uma ficha sobre cada clube carnavalesco. As fichas iam de 1961 a 1968. Trouxe-as agora para o Recife. E veja que interessante: aparece uma escola de samba, por exemplo, creio que Império do Samba, ou Império do Asfalto, onde registrei a observação: “Escola de samba enorme. Duzentas pessoas. Batucada de cinquenta pessoas”. Esse mesmo grupo saiu este ano com duas ou três mil pessoas. Isso é só para citar um exemplo do crescimento. A coreografia dos grupos, hoje, é mais desenvolvida. Tem mais grupo em cada categoria. Eu me alegro em ver que o dinamismo do carnaval continua.

DP – Na sua opinião o apelo erótico é válido nos desfiles carnavalescos?

KR – Ah, bom, um brasileiro muito inteligente me disse há alguns anos: “Olhe Katarina, o brasileiro foi formado de três raças, duas das quais andavam quase que inteiramente nuas, o índio da floresta tropical e o africano. Então, o europeu ia botar roupa nesse povo, num país tropical? O índio na sua nudez permitida é a criatura mais feliz do mundo. Bote roupa nele e ele morre de calor, com qualquer chuva pega um resfriado, ou pneumonia, e morre em poucos minutos”. Então eu acho esse negócio de nudez próprio do brasileiro, que volta a sua própria natureza. Vamos tirar toda essa roupa do carnaval (risos)... Bem, isso é mesmo surpreendente para os que vêm de fora. Mas eu acho uma beleza tudo o que o povo faz, se é do seu gosto.

DP – Você deve ter visto alguma coisa, este ano, pela televisão, do carnaval do Rio de Janeiro...

KR – Sim, eu conheço o carnaval do Rio desde a década de 1930. Até parece que estou ficando bem velhinha. Mas estive aqui ainda menina. E depois, na década de 1950, tive a oportunidade de ver o crescimento das escolas de samba. E vi na TV Manchete o desfile das escolas de samba até altas horas da madrugada, quando devia estar dormindo para me recuperar de outro dia de pesquisa de campo no Recife. Todo mundo sabe que o desfile das escolas de samba do Rio de Janeiro é um dos grandes espetáculos do mundo. Cada vez fica maior e mais fantástico. Eu não sei onde vai parar. Tudo muito bonito e crítico...

DP - ... talvez o povo seja o maior crítico social...

KR – Sim, Eu gostei imensamente da Beija-Flor com aquele negócio de “luxo e lixo”. Muitas dessas belezas do carnaval deveriam ser vistas nos Estados Unidos. Mas há um ponto interessante que acho que os brasileiros não sabem e vale a pena anotar: o carnaval brasileiro vai influindo nos Estados Unidos bastante. Quase todas as cidades norte-americanas têm baile de carnaval brasileiro, muito frequentados pela população. Em San Diego, na Califórnia, onde moro, há uma sociedade brasileira que todo o ano promove um baile de carnaval, de que sempre participo. Enche-se não somente de brasileiros e americanos, mas de toda colônia latina e de boa parte dos negros dos Estados Unidos, que raramente é vista num baile social. Os negros americanos naturalmente adoram o carnaval. Los Angeles tem três ou quatro bailes de carnaval brasileiro, San Francisco também, Nova York acho que tem pelo menos uns dez. E o que eu acho mais interessante ainda é que San Francisco estão surgindo escolas de samba, formadas de estudantes que se reúnem uma vez por semana para afinar a batucada. E aí você pode ver moças de cabelos louros e olhos azuis tocando tamborim, pandeiro etc. Há um grande desfile de escolas de samba em San Francisco, em junho, que já tive oportunidade de ver. Aliás, muitos deles são ensaiados por uma bailarina brasileira que mora em San Francisco. Saem escolas com porta-estandartes e ala de malabaristas. Não é tão bem-feito como no Brasil, mas o americano está tentando. (Finalizou).

Katarina Real, faleceu em 6 de junho de 2006, na cidade de Tucson, no Arizona (EUA), aos 79 anos.

Por: Jânio Odon/VOZES DA ZONA NORTE

Fonte: Diário de Pernambuco e Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj).

 

 

 

 


segunda-feira, 26 de junho de 2023

A difícil vida dos mocambeiros

 

O desolamento de uma mulher em seu mocambo, num olhar distante, sem perspectiva de melhores dias. Foto: Coleção Josebias Bandeira/Fundaj.

Não foi fácil para os moradores dos mocambos do centro do Recife, receberem à notícia de que seriam expropriados pela nova política de modernização da cidade. A chamada “campanha” promovida pela Liga Social Contra o Mocambo no governo do interventor federal, Agamenon Magalhães, não cumpriu seu papel social como estava escrito. A Liga, que depois passou a ser Serviço Social Contra o Mocambo (SSCM), preocupou-se mais em combater as investidas do Partido Comunista e suas ramificações nas comunidades, do que, propriamente, da real situação de miséria em que se encontravam as famílias carentes, moradores dos mocambos. Houve uma grande negligência nos assentamentos que vieram a surgir, e nas invasões em massa provocados por essas pessoas nas regiões de encostas, morros, córregos e alagados. Foram expostos a própria sorte. Sem transportes, escolas, postos médicos, água encanada e energia elétrica, além de serem lesados na hora de indenizá-los. O extinto Jornal Pequeno, em 27 de dezembro de 1945, publicou uma matéria que mostrava essa triste realidade e que o blog Vozes da Zona Norte, reproduziu na íntegra para os leitores:

Mais mocambos e maior abandono, a obra social do sr. Agamenon (Dizia o título).

Enquanto o sr. Agamenon Magalhães atirava-se furiosamente contra os mocambos de Santo Amaro e de outros pontos mais centrais, milhares e milhares dessas humildes choupanas iam surgindo diariamente nas zonas suburbanas transplantando-se para longe a paisagem que os olhos do ex-interventor não podiam contemplar. O morador do mocambo após assistir á derrubada impiedosa de residência, partia em busca de outras plagas, onde pudesse construir uma tapera para o seu lar.

As casinhas apareceram menores com um aspecto de miséria mais impressionante, porque o dinheiro era também mais curto. Não foram poucos os mocambos avaliados em cinco e mais milhares de cruzeiros e a famigerada “campanha” indenizava por duzentos ou trezentos. E não deixavam nada, nem mesmo a madeira para o morador.

Os mocambos foram retirados do centro do Recife e tomaram rumo dos acostamentos de barreiras, morros, córregos e alagados da periferia. Foto: Josebias Bandeira/Fundaj.

Em Olinda – Na vizinha cidade do norte, por exemplo, o número de mocambos construídos nestes últimos anos, atinge cifras sem precedente, como se pode deparar do quadro abaixo:

1939 – Existiam 2.552 mocambos

1940 – Existiam 3.664 mocambos

1941 – Existiam 4.740 mocambos

1942 – Existiam 5.359 mocambos

1943 – Existiam 5.586 mocambos

1944 – Existiam 6.093 mocambos

1945 – Existiam 7.925 mocambos

Esses dados foram colhidos na Prefeitura de Olinda, e não correspondem, exatamente, á verdade. É pelo menos o que deixa crer o lançador daquela municipalidade, o qual nos informou que “inúmeros mocambos vêm escapando à caneta tendo muita gente construído o seu casebre até sem licença”.

Entrando ou não nas contas da Prefeitura, a verdade é que os mocambos em Olinda, são cada dia mais numerosos espalhando-se de preferência, na Estrada de Beberibe, Salgadinho, Matumbo, Sapucaia, Caenga, Campo de Goiás, Ladeira do Monte, Estrada do Cemitério, Estrada do Rio Doce, Praia do Rio Doce, Muntrizes, Jatobá, Caravelas, Forno da Cal, Peixinhos, Avenida Nova, Sítio Novo, Sítio dos Arcos e no Istimo.

Nas ruas sem nome e nos becos intricados desses pontos longínquos, o morador do mocambo, batido de sua antiga residência, foi construir o novo lar. Muitos desses tugúrios, naturalmente, escaparam às vistas dos fiscais da Prefeitura. Muitos outros hão de ter faltado á estatística, num arranjo de última hora, para não mostrar tão claros os efeitos desastrosos da “campanha”.

Esses efeitos estão estampados na fisionomia dos que habitam os mocambos, na sua voz arrastada, no seu desespero sem remédio. Expulsos do centro usurpados nos seus direitos e explorados na sua economia, eles guardam o ódio, alimentado pelas contingências, à espera de um dia melhor.

Falam os moradores de mocambos – Logo ali, perto do Matadouro, em Peixinhos, no local que dá entrada para uma zona toda cheia de mocambos; o repórter encontrou três moradores da rua da Areia. Os três palestravam sobre a falta de bondes e esconjuravam a vida do pobre.

- “Vida de cachorro, essa da gente”, sem se esquecerem de citar Agamenon e sua “campanha”, no meio da discussão.

Falamos a seguir com seu Inácio, residente ali há mais de dez anos. Disse-nos ele que, quando comprou o seu, havia por ali, poucos mocambos. Porém, de 1940 para cá, construíram-se mais de mil. Gente ainda das bandas de Santo Amaro, que teve seus mocambos derrubados.

Ouvimos também, a senhora Severina, moradora da rua São Sebastião, em Peixinhos. Declarou-nos essa senhora que perdeu dois mocambos, um dos quais havia custado mais de 5 mil cruzeiros e foi indenizado por 600 cruzeiros. E ao chegar em casa, notou, conferindo o dinheiro, que o sr. Alfredo...lhe dera 590 cruzeiros em vez de 600. Referiu, também, que muitos morreram de desgosto, longe dos seus mocambos devastados pela febre de destruição do então governante. Que outros enlouqueceram e, ficaram de mãos erguidas para o céu, diante de seus mocambos reduzidos a montões.

Crianças, moradores dos mocambos da antiga rua da Areia, em Peixinhos. Foto: Jornal Pequeno/1945.

Os pequenos – É, esses mocambos também são moradia de garotos, crianças nascidas na lama, habituadas ao charco. Vivem assim, como nasceram, sem que mereçam dos poderes competentes uma atenção qualquer. Era Peixinhos, zona habitada por grande número de famílias, não há uma só escola pública – nem estadual, nem municipal. Um só estabelecimento de ensino, onde aquelas crianças possam assegurar-se o direito de saber alguma coisa, não existe em toda aquela redondeza.

A escola dos meninos pobres de Peixinhos é o alagado fétido, onde vão pescar siris e caranguejos. Este é, sem dúvida, um dos mais dolorosos efeitos dessa “campanha contra o mocambo”, a qual na verdade, foi dirigida contra o morador do mocambo. Em outros locais menos distantes, os garotos podiam matricular-se num grupo escolar, frequentar as aulas, aprender a assinar o nome. Arrancando-lhes essa possibilidade e atirando-os ao charco, o ex-interventor apenas, levantou-se impunemente contra essas pobres crianças, tornando-lhes mais difícil o caminho da vida.

Registe-se este e outros fatos aqui citados, como testemunhos irrefutáveis do ódio que foi a bandeira de governo do sr. Agamenon Magalhães e que ele fez tripudiar, especialmente sobre a mágoa dos pequeninos e desamparados.

Por: Jânio Odon/VOZES DA ZONA NORTE.

Fonte: Jornal Pequeno.


domingo, 18 de junho de 2023

1969- Quem ia ao Cinema no Recife?

 

O Cinema São Luiz foi inaugurado em 6/9/1952. O preferido dos recifenses. Foto: Unicap/autor desconhecido/1952.

Os cinemas existentes no Centro e nos subúrbios recifenses já foram grandes atrações para os amantes da sétima arte. Já viveu seus melhores momentos até o final da década de 1980. Depois surgiram as locadoras de fitas VHS, os filmes em CDs e os médios e grandes shoppings e suas diminutas salas de cinema, e agora, as TVs por assinaturas e as empresas de filmes online. O avanço tecnológico enterrou de vez, o saudoso e romântico encontros nas salas dos antigos cinemas recifenses.

O Diário de Pernambuco, em 17 de agosto de 1969, em uma matéria do jornalista Enéas Alvarez, sobre a frequência do público recifense nas 28 principais salas de cinemas do Centro do Recife e dos subúrbios, já alertava sobre a necessidade de inovações que já vinham acontecendo no Sul do país no sentido de atrair mais público para as salas de projeções. A publicação do Diário dizia o seguinte:

Quem vai ao cinema no Recife (Dizia o título).

Um levantamento interessante foi feito, recentemente, pela Delegacia do Instituto Nacional do Cinema, em Pernambuco, sobre a frequência média diária dos expectadores nos 28 cinemas do município. O mapa nos dá uma ideia geral do interesse que desperta a Sétima Arte entre os recifenses, salientando-se a percentagem que frequenta salas exibidores cinematográficos, igual a 1,5% da população total. Assim é que ficamos sabendo a média-diária: 15.709 pessoas vão ao cinema diariamente no Recife.

As predileções do nosso público são pelo Cinema São Luiz: 1.147 ingressos inteiros e 1.027 entradas meias são vendidos por dia, naquele cinema. Em segundo lugar, vem o Cine Moderno, com uma média de 1.094 inteiras e 824 meias, diariamente. O terceiro lugar coube ao Art Palácio, que vende por dia 928 inteiras e 680 meias. Para a surpresa nossa, o Cine Glória, no pátio do Mercado de São José, ocupa o quarto lugar, em frequência, no Recife: 909 inteiras e 76 meias, por dia, notando-se que lá, na praça do mercado, há poucos estudantes. O Boa Vista, o Eldorado e o Trianon, empataram em quinto lugar de preferência, vendendo respectivamente, 504, 516 e 508 inteiras e 348, 241 e 383 meias. O número de estudantes ali sensivelmente, com relação ao Eldorado no Largo da Paz (Afogados).

Se preferirmos fazer uma comparação por bairros, comecemos por Casa Amarela, que tem quatro cinemas: O Rivoli bate o recorde, vendendo cada dia, 438 inteiras e 239 meias. Logo após os casamarelenses frequentam o Albatroz, em número de 337 inteiras e 148 meias. O Cinema de Arte Coliseu, infelizmente, recebe poucas pessoas e assim mesmo, pouco habitantes do bairro. Fica provado que o nosso público não gosta do cinema de arte, visto que o maior cinema de Pernambuco, com 1770 poltronas, vende em média cada dia, 293 inteiras e 169 meias. O pessoal do Alto José do Pinho prestigia o Cinema Guarani: 161 inteiras e 75 meias, diariamente. Em Água Fria, o Cine Olímpio empata com o Cinema Império, vendendo, respectivamente, 221 e 292 inteiras e 134 e 117 meias. Perde nas inteiras, mas ganham nos meios ingressos. Em Afogados, o Cine Central, com ar-condicionado, perde para o Eldorado, que se situa em frente, sendo ambos da mesma empresa. O Cine Central recebe 314 inteiras e 177 estudantes, enquanto seu vizinho (vide acima) o supera. No Cordeiro, o Cine Brasil é o preferido, enquanto o Cine Cordeiro demonstra um aumento sensível de público. O Cine Brasil vende por dia, 308 inteiras e 171 meias, enquanto o porteiro do Cine Cordeiro, rasga diariamente120 ingressos inteiros e 56 meio-ingressos.

Em Campo Grande, o Cine Vera Cruz, com lotação igual à do Arte Palácio, vende 153 inteiras e 100 meias, enquanto o Cine Eden tem a frequência de 74 inteiras e 58 meias. Os demais cinemas não têm concorrentes nos seus bairros: o Atlântico, no Pina; o São José, em Coqueiral; o Espinheirense, no Espinheiro; o Santo Amaro, em Santo Amaro e o Torre, na Torre. Onde há predominância de estudantes é na Zona Sul: o Cine Guararapes (sozinho) para Areias, Barro, Tejipió, São Miguel, Ipsep, etc, vende por dia 24 estudantes e 154 inteiras. O Cine Beberibe também é soberano no seu bairro e o Cine Recife na Encruzilhada, vende mais ingressos para estudantes, do que para adultos.

Em resumo, os porteiros dos 28 cinemas do Recife inutilizam diariamente, 9.825 ingressos inteiros e 5.917 meias entradas, num total de 15.769 bilhetes rasgados e colocado nas urnas. Por sua vez, as bilheteiras lutam para arranjar troco para quinze mil e tantas pessoas, que representam 1,5% da população total da cidade.

Multiplicando-se por 180 dias o número diário, obtemos a média de frequência num semestre. Por isso, no primeiro semestre de 1969, dois milhões, setecentos e quarenta e dois mil e setecentas e oitenta e quatro pessoas foram aos cinemas do Recife, onde riram, choraram, chuparam bombons, passaram o tempo, xingaram os filmes, namoraram, tiveram problemas com trocos e com filas, ganharam cultura ou roncaram tranquilamente deitados nas poltronas. O número citado (2.742.764) representa quase três vezes a população total do Recife, que, em seis meses, vai três vezes ao cinema.

Os preços variam de NCr$ 0,30 (Guarani) até NCr$ 2,40 (Dois cruzados novos e quarenta centavos) nos cinemas do Centro, sob os olhos da Sunab. No subúrbio, a média é NCr$ 1,00, que não dá problema de troco, mas, o Espinheirense ainda cobra NCr$ 0,60 e o Coliseu, NCr$ 1,80. O Boa Vista, depois de discussões permaneceu em NCr$ 2,00, satisfazendo mutuamente ao público e ao Órgão controlador de preços.

O ingresso padronizado está prestes a ser instalado no Recife. No Sul, os números triplicaram, com a adoção do ingresso governamental, graças aos sorteios periódicos feitos entre os habituês. Oxalá, o Recife, a exemplo de outras capitais se comporte do mesmo modo: vamos ao cinema! Para ganhar prêmios! O futuro virá e eu voltarei a comentar com vocês se houve, ou não, aumento de público. Peçam a Deus para sobreviverem até lá.

Por: Jânio Odon/VOZES DA ZONA NORTE

Fonte: Diário de Pernambuco/Texto de Enéas Alvarez.

domingo, 11 de junho de 2023

Antigos conflitos políticos de Beberibe

 

Aspecto do povoado de Beberibe em 1904. Homem sobre uma ponte do rio Beberibe. Foto: Cartão Postal Brasil/28.6.1904.

O coronel Luciano Eugênio de Mello era considerado na segunda metade do século XIX, um dos homens mais poderosos e influentes de Beberibe. Possuía várias propriedades de terra, inúmeros imóveis e dezenas cabeças de gado. Foi ele que cedeu o terreno na Estrada do Caenga para a construção do novo cemitério público de Beberibe (atual Cemitério de Águas Compridas), que foi inaugurado por ele em 1888, onde firmou um contrato com a Câmara Municipal de Olinda, com o direito de cobrar por todos os sepultamentos. Os opositores, não perdoavam. O acusavam de abuso de poder; de não enterrar os indigentes; manter o cemitério como propriedade particular; de criar o gado solto, prejudicando as plantações dos pequenos agricultores que tinham as suas plantações destruídas pelos animais do coronel, e por praticar o desmatamento para produzir carvão. O coronel Luciano Eugênio, sempre rebatia às críticas com notas no Diário de Pernambuco, mas a oposição ferrenha, sempre contra-atacava sem piedade.

Para muitos, o coronel Luciano Eugênio de Mello, era um bom homem que ajudava muita gente e trazia muitos benefícios para o povoado de Beberibe. Para outros, era uma pessoa arrogante, intransigente, autoritário e explorador.

Luciano Eugênio de Mello, nasceu em 1838, em Beberibe e faleceu no mesmo povoado, em 1º de janeiro de 1911 aos 73 anos. Foi oficial da Guarda Nacional do Império, chegando ao posto de coronel. Foi prefeito de Olinda, presidente do Conselho Municipal de Olinda e subdelegado de Beberibe. Era casado com a Sra. Maria Alves de Mello e teve cinco filhos. Até hoje, a Família Eugênio de Mello é reconhecida, principalmente no bairro de Caixa D’Água, onde seus descendentes eram grandes proprietários de terras. Há uma escola no bairro que leva o sobrenome da família através de outro ilustre membro: Valeriano Eugênio de Mello (coronel Vavá).

A liderança e o prestígio político do coronel Luciano Eugênio de Melo renderam algumas críticas contundentes de seus opositores na Câmara Municipal de Olinda conferidas pelos senhores, Manoel Lopes Machado Júnior e Veritas, publicadas pelo “Jornal do Recife” na segunda metade do século XIX :

Jornal do Recife, em 10 de julho de 1889, publicou as críticas conferidas pelo Sr. Manoel Lopes Machado Júnior, da seguinte forma:

O Sr. Luciano Eugênio de Mello labora num equívoco quando diz na sua publicação de ontem no Diário de Pernambuco, que o Cemitério de Beberibe (atual Cemitério de Águas Compridas) é propriedade particular, e que por isso os cadáveres dos indigentes devem ter sepultura no cemitério público.

Em Beberibe não há outro cemitério público senão o que com a Câmara Municipal de Olinda, contratou o Sr. Luciano de Mello em virtude da lei nº 1862, declarando esta que o contrato ficaria sujeito à aprovação do poder competente (Assembleia Provincial).

Não sei, pois, como vista daquela lei o cemitério é particular e tenha o Sr. Mello o direito de recusar sepultura aos pobres. É certo que Sua Senhoria escolheu do patrimônio da igreja (católica) para a construção do dito cemitério, mas também é certo que procurou para levantá-lo a efeito o concurso dos pobres.

Que ele cedesse em favor da igreja os proventos que devia auferir em razão do contrato, faz o seu dever indenizando a da renda do terreno, que, sem deliberação da irmandade serviu-se dele, mas que daí queira inferir que o cemitério é particular, é o que ser-lhe difícil explicar. (Finalizou).

Crianças caminhando nas águas do rio Beberibe em 1908. Foto: Manoel Tondella.

O Jornal do Recife, em 26 de janeiro de 1890, publicou as críticas conferidas pelo Sr. Veritas, da   seguinte forma:

A freguesia de Beberibe como parte componente do município de Olinda, não podia deixar, por sua vez, de sentir os efeitos da desídia criminosa do ex-representante da Câmara em prejuízo dos pacíficos e laboriosos habitantes, e sempre em proveito do mandão local.

Devastadas as matas pela indústria do carvão, onde Luciano de Mello auferia grandes lucros, foram esses campos transformados em campo de criação contra a expressa determinação da lei que as considerou campos agrícolas.

Em Beberibe, para que possam lucrar os poucos agricultores as suas lavouras, são forçados a construir cercas com grande trabalho e despesas para as garantir contra o gado solto, o que muitas vezes não é bastante, tendo de se conformar em ver mudos e quedos as suas lavouras destruídas, resultado de tantos dias de labor, para não incorrer no desagrado de Luciano de Mello, o grande explorador da indústria pastoril naquele lugar.

O Dr. Ernesto de Aquino, membro da intendência, morador ali, conhece de perto da verdade, e confiando no seu critério e independência do caráter, muito poderá fazer em bem daqueles infelizes e em respeito à lei. Nessa povoação mora o ex-vereador Reis, o celebre capitão da barca de Noé, que conhecendo todos esses fatos nunca procurou tomar providência para minorar os prejuízos daqueles laboriosos habitantes! Porque sendo como era feitura de Luciano de Mello nada podia fazer.

A lavagem de roupa se fazia além da represa da Companhia Santa Tereza, seguindo as águas sujas para o abastecimento de Olinda. No rio Beberibe são lançadas sem o menor escrúpulo materiais fecais, animais mortos e toda sorte de imundices, tornando-se quase que imprestáveis as águas límpidas e puras daquele rio.

Os taberneiros têm duas medidas e dois pesos, uns servem para comprar farinha, milho, feijão e aguardente aos almocreves e outros para vender aos incautos que lá se fornecem, iludindo criminosamente no seu comércio a uns e outros.

Tendo sido constantemente reclamada ao poder competente a necessidade de um cemitério em Beberibe, foi pela Assembleia Provincial autorizado tal melhoramento nas disposições gerais da lei do orçamento municipal Nº 1862, artigo 18 e seus parágrafos; a construção desse cemitério a Câmara contratou Luciano de Mello, exorbitando, porém, das faculdades da lei para conferir-lhe vantagens que não se podia conceder, tornando desta sorte nulo o contrato em sua essência.

Luciano Eugênio de Mello lançando mão de terrenos da irmandade de Nossa Senhora da Conceição de Beberibe, aí edificou o cemitério em péssimas condições higiênicas, com o auxílio dos moradores do lugar, uns facilitando meios pecuniários, outros voluntariamente o seu trabalho e finalmente outros, compelidos criminosamente pela polícia a trabalhar.

Concluídas as obras, querendo Mello arredar de si a convivência no no escândalo praticado pela Câmara, fez doação à irmandade referida do cemitério, doando aquilo que não lhe pertencia somente. Os cadáveres dos indigentes que eram remetidos pela polícia para ali afim de serem inumados, foram muitos deles devolvidos, porque Mello não consentia enterrar  quem não tivesse com que pagar.

Até com os mortos autorizava a Câmara a especulação! Cidadãos intendentes, examinai este contrato que se deve encontrar nos arquivos da Câmara e uma vez com ele na mão vos haver de convencer da verdade das minhas asserções.

Procurai um outro agente municipal que seja capaz de cumprir as nossas determinações, e substituí o atual fiscal desse lugar que não vos poderá auxiliar, porque sendo sobrinho de Luciano Eugênio de Mello e vivendo com ele na maior intimidade e dependência, procura por todos os meios iludir a vossa boa fé. Finalizou Veritas.

Por: Jânio Odon/VOZES DA ZONA NORTE

Fonte: Jornal do Recife.

quinta-feira, 1 de junho de 2023

O Viajante inglês "O Retorno"

 

Há mais de 200 anos, o viajante inglês Henry Koster, retornava da Ilha de Itamaracá durante o inverno de 1815, enfrentando os morros e as matas de Paratibe, Mirueira, Beberibe e Água Fria, em seu retorno para o Recife. Gravura: Ilustrativa.

O texto a seguir, retrata a trajetória do viajante inglês Henry Koster, no inverno de 1815, quando deixava a Ilha de Itamaracá rumo a Água Fria. Koster faz uma narrativa das dificuldades enfrentadas por ele e seu guia, Manuel, montados em seus cavalos num percurso cheio de obstáculos provocados pelas chuvas e os detalhes minuciosos da região dos povoados de Paratibe, Mirueira, Beberibe e Água Fria e locais que ainda nem existiam como povoados é o caso de: Santa Casa, Alto da Conquista, Águas Compridas e Alto do Pascoal, através da antiga Estrada da Boiada. Além de detalhes sobre a fauna, como personagens que enriquece esta história que aconteceu há mais de 200 anos. Acompanhe parte dessa linda aventura extraída do livro  “Travels in Brazil” de Henry Koster, traduzido por Luiz da Câmara Cascudo em 1942 com o título: “Viagens ao Nordeste do Brasil”.

Antes do começo das chuvas em 1815, deixei Itamaracá com Manuel, pelas 4 horas da tarde, bem retardado por ocorrências imprevistas. A temperatura era boa e a lua se devia erguer brevemente. Esperava uma noite agradável, mas quando estávamos a umas três léguas da ilha a chuva começou a cair abundantemente, chegando à plantação de inhame, meia légua adiante, estávamos completamente molhados. Imediatamente depois desse lugar o caminho tem ao lado uma alta colina, e a água se precipitava em grande quantidade, cobrindo até os joelhos dos cavalos, e não obstante, alcançamos a estrada das boiadas e paramos em uma venda á margem do percurso. Comprei uma grande dose de aguardente e a despejei sobre minha cabeça e ombros e nas minhas botas, fazendo Manuel o mesmo, e bebemos uma boa parte. Esse processo é geral. Tendo-o em seguido há algum tempo e mesmo ficando exposto às chuvas no correr do ano, nada sofri, nem mesmo padecendo outro ataque de febre, mas é possível atribuir-se o fato as precauções mais a excelência do clima.

Quando atingimos a povoação de Paratibe a noite estava fechada. Encontrei Antônio, o homem a quem haviam armado uma emboscada quando eu residia em Jaguaribe, e pediu-me que ficasse em sua choupana, mas preferi seguir, embora estivesse ensopado pela chuva. Subindo a colina além de Paratibe, tinha eu a esperança de uma linda noite porque a lua clareava, mas só apareceu alguns instantes. No Vale da Mirueira a chuva nos apanhou novamente e com relâmpagos, e fomos pela floresta, através do vale, numa treva tão imensa que impedia avistar o cavalo de Manuel, enxergando apenas pelo clarão dos relâmpagos, embora o animal fosse de uma cor cinzenta, aproximando-se do branco, e eu estivesse tão vizinho que o encontrava, tocando-o. Quando chegamos perto da colina que desce para os arredores de do Recife, recomendei tomar à esquerda porque há um precipício perigoso na direita da estrada. Não me ouviu ou seu cavalo era teimoso, e seguiu muito pela direita, escorregando e caindo num ponto a poucas jardas do lugar que devia evitar. Desmontei para auxiliar Manuel, vendo o que passava apenas pela luz dos relâmpagos. Perguntei por ele mesmo, seu cavalo e sua pistola e recebi como resposta que tudo ia bem. Disse-lhe: “Onde está o caminho?” porque volteara tanto, em pontos diversos e tantas vezes, para socorrê-lo, que não tinha noção do rumo que deveria tomar para reencontrar a estrada, e, indeciso, por um momento formei a ideia de ficar no local até que o dia rompesse. Mas, falando a Manuel se ele tinha uma certa lembrança sobre o caminho seguro, respondeu-me com voz áspera, porque estava molhado e contundido: “Vejo o caminho, não tenha receio âmo!” Seguiu, e eu acompanhei-o levando cada qual o seu cavalo. Descemos por uma orla porque a estrada estava muito escorregadia, devido à chuva e não era possível avançar doutra maneira. Meu cavalo bateu-me com a cabeça várias vezes e pouco faltou para que tombasse. A estrada teria seis pés e num lado havia o fundo precipício formado pelas torrentes na época chuvosa, determinando ao solo desmoronamentos e, na margem oposta, a declividade é menor, mas é coberta de bosques de arvores onde é possível perder-se sem luz.

Chegamos ao pé da colina sem acidentes e quando atingimos a povoação de Beberibe a chuva cessara, a noite estava clara, não obstante a lua continuar oculta. Cruzamos vagarosamente a colina além de Beberibe e alcançamos Água Fria, residência de um dos meus amigos, a duas léguas do Recife, entre uma e duas horas da madrugada. Se o tempo estivesse bom, teríamos chegado às 8 ou 9 horas da noite anterior. O instinto (se o posso assim chamar) que os indígenas possuem, assim com grande número de negros e de mulatos, de encontrar o caminho certo, sempre me surpreendeu, mas não tanto como nessa ocasião. Eu nada podia enxergar, mas Manuel estava certamente convicto de conhecer a estrada, ao contrário não falaria de modo tão arrogante. Ele possuía uma grande reserva de coragem mais era sempre frio e prudente.

Passei em Água Fria uma das horas mais agradáveis da minha residência no Brasil. O dono é um cavalheiro inglês ao qual devo muitas obrigações. Erámos amigos íntimos e me sentia à vontade em Água Fria como em Itamaracá. O lugar estava em situação desoladora quando ele tomou posse, e mesmo que o solo não fosse muito propício, o sítio prosperava. Construíra uma boa casa, edificando galpões, fazendo cercas e plantando árvores úteis e ornamentais. O lugar era infestado pelas formigas vermelhas, mas, com muito trabalho, as destruíra, escavando o solo para matar os formigueiros. Detrás da residência havia um lago, de considerável extensão, formado por um riacho cujo curso parara pelo entulho de areia solta e branca na parte onde passa a estrada, sendo esta, de uma banda, mais elevada que o lago assim como os terrenos onde o riacho antigamente corria. Quando as águas descem pelo inverno o lago transborda e alaga a estrada, mas durante a maior parte do ano o caminho é seco ou quase seco. Se esse lago fosse drenado, a propriedade de Água Fria valeria dez vezes mais o que vale atualmente, porque seus limites são dados pelo mesmo canal do riacho. O lago é coberto de juncos, caniços e ervas, cujas raízes entrelaçadas formam uma espécie de tecido a flor d’água, não suportando o peso de um homem, mas exigindo muito esforço para abrir-se uma brecha através dele. Nesse lago há numerosos jacarés ou aligátores (tipo de jacarés encontrados na América do Norte e na China), tornando perigosa a operação de cortar os juncos, necessária para abrir um espaço para bebida e banho dos cavalos, assim como para guardar a erva seca que será alimento para os animais no verão. Vou mencionar, entre outras, a família dos lagartos. O camaleão pode ser citado assim como o teju Assú, que penso ser a” lacerta teguixin”, esse último é muito comum. Há também o calangro, menor que os outros dois, e essas espécies são comidas pela gente do povo. A vibra e a lagartixa são duas espécies pequeninas de lagartos, podendo ser vistas em todos os lugares, nas casas, nos jardins e nos matos. Fazem mais benefícios que males, devorando moscas, aranhas, etc, e são, para os meus olhos, lindas criaturas. Sua atividade, e ao mesmo tempo, sua timidez, agradavam-me.

Viajando para o Recife, através das matas da Mirueira, ouvi várias vezes o rouco coaxar do “sapo cururu” e também o “sapo boi” ambos de voz bem desagradáveis e particularmente sonoras, durante as noites invernosas que descrevi. Os gritos constantes dos grilos, logo que o sol se põe, raramente deixa de aborrecer os recém-vindos a esse país. Recordo-me da primeira noite que passei na região, quando da minha chegada a Pernambuco. Conversando, detinha-me várias vezes, esperando que o rumor cessasse, depois prosseguia (como sucedeu a várias pessoas) e finalmente já não ouvia o barulho nem que se fizesse em minha presença. Quando um desses grilos se instala numa habitação não há sossego antes que o desalojem, devido à insistência do seu apito...

Por: Jânio Odon/VOZES DA ZONA NORTE.

Fonte: Livro: Travels in Brazil, Henry Koster.